quinta-feira, 19 de junho de 2008

cristal líquido

"Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura..."
Alberto Caeiro



Cheguei mais perto e vi que era um magnífico cristal. Cheio de faces, múltiplas delas; algumas translúcidas, outras completamente negras, algumas espelhadas. De cada ângulo que o fitava, observava novos detalhes. Cada raio de luz que incidia parecia transformá-lo em um cristal diferente, dadas as cores que resplandeciam, imagens distorcidas que surgiam não-sei-donde-nem-como, e reflexos que reluziam. Eu tirava os olhos do cristal e tentava imaginá-lo. Não conseguia: sempre esquecia uma sombra, não lembrava de um vértice, não podia ter certeza da existência de uma face e de sua respectiva posição, lá onde ela estaria oculta caso o cristal estivesse, de fato, sendo observado. Era como se, arisco que fosse, não deixasse que minha memória o domasse, de modo que não conseguia aprisioná-lo e o levar comigo para o pensamento. Punha-lhe, novamente, os olhos, e lá estava ele – inédito. E assim, por milhões de anos, permaneceu sempre inédito a todos, a cada segundo e a cada movimento do sol.
I

Como tivesse o pulmão embebido em água, o ar lhe faltava. Porque estava submerso, e assim permaneceria por tempo indeterminado sem que nada fizesse para se livrar do aquário em que se enfiara e pelo qual acabou por se acostumar. Era jaula envidraçada, mas correntes não havia. Esclareça-se, desde logo, que até poder-se-ia sustentar que as havia, muito embora se tratasse, ao contrário do que se poderia erroneamente pensar, de suaves correntes de água que o guiavam languidamente pela massa líquida e, não, de correntes talhadas em ferro. Flutuava caótico no escasso espaço em que se encontrava, porém tão docemente sem ordem, que a própria brandura com que seguia era a sua ordem. É bem verdade que as cadeias de água às quais se agarrava não o prendiam, propriamente – mas não se podia dizer que não cuidasse de um prender-se por se deixar levar.


II

Eram os vidros que cingiam as veredas aquáticas pelas quais era conduzido. Mas, limpíssimos e transluzentes que eram, deles não se apercebia. Não se sabia se tal fato decorria de sua qualidade de transluzentes, ou por não querer, ele, simplesmente, deles se aperceber. Conduzido até o extremo da vereda pela qual as correntes o guiavam – o vidro –, retornava por outra (ou pela mesma, sabe-se lá, vez que não há consenso acerca de se cingida, a vereda finda, ou se o tímido turbilhão de água ocasionado pela força tênue da corrente tolhida pelo vidro somente lhe altera a direção). Fato é que, preso àquelas cadeias frouxas, seguia sem que se interessasse pelo que ocasionava a sensação engraçada e curiosa de girar e sacudir-se livre em meio ao revolvimento da água e sentir um frio na barriga esquisito e gostoso, retornando, depois, ao mesmo estado em que anteriormente se encontrava: flanando pelas veredas caóticas guiado pelas correntes de água contendidas com os vidros do aquário. Todo o inusitado da vida era aquele calafrio.

III

O desagradável incômodo de ter os alvéolos impregnados de líquido lhe parecia ínfimo diante da monstruosidade daquela sensação de estar-se deixando levar pelas correntes e, no meio do calabouço envidraçado, asseado e no qual podia flanar, posto que não estava preso a grilhões, sentir-se, ao cabo, protegido. Seguro. Acautelado. Tudo porque tinha a imatura percepção de que a água não tinha peso algum porque era transparente e fluida, mal sabendo que, não sendo muito menos pesada que o ferro, bastava que sua covardia lhe fizesse mais fraco que a frouxidão própria das ligações estabelecidas entre os elos da cadeia d’água para que permanecesse eternamente preso.

(Imagem: Francis Bacon, Study After Velasquez I, 1950, 198 x 137 cm)

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