(Nelson Rodrigues)
Basta dizer o seguinte: era uma pequena cidade, quase inexistente, metida nos cafundós-do-judas. Nem rádio, nem telefone, nem dentista. E o que a caracterizava acima de tudo era a falta de mulher. Ao todo uma meia dúzia para uns cento e cinqüenta seringueiros. Acresce que estavam todas casadas e que os maridos eram válidos e com um senso feroz e homicida de propriedade.
Eles avisavam:
— Quem se meter a besta, já sabe. Passo fogo!
E ninguém mexia com as infelizes. Elas viviam encerradas nos seus buracos, sob controle tremendo, sem alegria nenhuma. Quando abriam a boca, era um rir de dentes cariados. Não cuidavam de si, não se enfeitavam. Enfeitar para quê? Para o próprio marido? De pé no chão e imundas, não interessariam a ninguém, salvo ao esposo e aos cento e cinqüenta seringueiros, coitados, que viviam no mato e que já nem se lembravam da própria condição humana.
E foi nesta cidade, esquecida de Deus, que o Quincas bateu um dia. Chegou, foi espiando e perguntando, a um e outro:
— Como é que é o negócio aqui, hein?
Disseram:
— Uma droga.
Resposta vaga que não satisfez a quem vinha de fora, e não conhecia coisa nenhuma da cidade, nem suas pessoas, nem seus costumes. No único boteco do lugar, com um companheiro acidental, o Quincas explicou que fora para ali, sabe por quê? Baixou a voz:
— Matei uma cara. Estou fugindo da polícia.
A MULHER
Com a tremenda vitalidade dos seus vinte e cinco anos, trazia uma idéia fixa. E perguntou:
— Aqui tem boas pequenas?
— Tem e não tem.
Espantou-se:
— Como?
O outro foi mais claro:
— Todas as mulheres aqui são casadas.
— Todas?
— Todas.
E o Quincas, na febre dos vinte e cinco anos, insistiu:
— Mas não se dá um jeito? Não se arranja uma solução?
O companheiro cuspiu por cima do próprio ombro e foi categórico:
— Não há solução.
Não houve limites para a decepção de Quincas. Pulou:
— Essa é a maior! — E, cutucando o outro: — “Nem pagando mais? Muito mais? O dobro?”.
Batia no próprio bolso:
— Faz uma forcinha, faz!
A FOME
Então, desanimado, o Quincas começou a perambular pela cidade. E, pouco a pouco, foi perdendo as ilusões. No fim de dez dias, era outro homem: fez uma meia dúzia de amigos e perguntava:
— Como é? As mulheres daqui não dão as caras?
— Você é besta!
— Por quê?
Riram na cara dele:
— Você pensa que os maridos vão deixar? A mulher que meter o nariz do lado de fora está frita.
Quincas coçou a cabeça, praguejou:
— Terra amaldiçoada!
Nostálgico da cidade, nostálgico do litoral, acabou se lembrando da pequena que matara. Contou que ela o passara para trás. Mas, naquele fim do mundo, em pleno território do Acre, suas idéias sobre a fulana já eram outras. Dir-se-ia que o ódio ia, gradualmente, extinguindo-se no seu coração. Admitia:
— Tinha suas qualidades.
Os amigos, com água na boca, faziam perguntas diretas e sôfregas:
— Bom corpo?
E ele, fincando os cotovelos na mesa, numa convicção profunda:
— Que coxas!
Os outros se entreolhavam, numa inveja medonha. Houve quem explodisse:
— Você é uma boa besta. Não devia ter matado. Que palpite infeliz!
Quincas acabou reconhecendo:
— Foi um golpe errado!
E, agora, já se contentaria com o mínimo, ou seja, “ver” uma das mulheres locais. Seria uma satisfação visual, uma espécie de triste e idiota compensação. Interpelava os habitantes: “Como é que vocês agüentam?”. Os outros respondiam: “A gente se acostuma”. E ele, passando a mão pela cabeleira imensa, à Búfalo Bill, dava murros na mesa:
— Pois olha! Eu não agüento. Qualquer dia estouro!
A falta de uma mulher doía mais nele do que fome, sede. Dizia a si mesmo: — “Se, ao menos, um desses pilantras morresse!”.
A IDÉIA
Um dia, no boteco, aventurou:
— Sabe o que é que mais me admira? Que me deixa besta?
— O quê?
E ele, na sua fúria contida:
— Que ninguém aqui tenha se lembrado de matar um pilantra desses e ficar com a mulher!
Houve um silêncio. Todas as caras presentes pareciam espantadas. Um fulano, que catava lêndeas na cabeça de outro, interrompeu esta função. Estava de boca aberta, num assombro absoluto. Deixou-se cair numa cadeira, como se a idéia, que jamais lhe ocorrera, o deslumbrasse. O Quincas, vendo o efeito, tratou de explorá-lo. Era direito aquilo, era? Enquanto uma meia dúzia tinha mulher, cento e cinqüenta sujeitos não. Deu outro murro na mesa:
— Não somos palhaços de ninguém! — E esbravejava, cada vez mais exaltado: — Está errado, erradíssimo!
Então, pouco a pouco, as bocas, as mãos, os olhos foram se transformando. Dir-se-ia que a loucura do Quincas contagiava todo mundo. E o rapaz, arregimentando adesões, berrava: “Por que é que o marido há de ter mais direito do que nós?”. Formulava o problema com uma expressão de triunfo: “Respondam”. E, fora de si, aduzia o argumento numérico: “O marido é um só e nós somos cento e cinqüenta!”. Queria, em resumo, que fossem, de casa em casa, arrancar as mulheres. Houve um súbito berro coletivo no boteco. E teria acontecido o diabo se, de repente, não irrompesse, ali, um sujeito, de pés descalços e barbudo como os outros. O sujeito anunciou:
— A mulher do Baiano está morrendo!
O ROSTO
De um instante para outro, a fúria se fundiu em espanto. Quincas apertou a cabeça, entre as mãos, gemendo:
— É o cúmulo! É o cúmulo!
E, sem mais palavra, aqueles homens atormentados dirigiram-se, num maciço e solidário grupo, para a casa do Baiano. Iam fazer o quê? Nem o próprio Quincas poderia dizê-lo. Crispavam as mãos e suas gargantas estavam secas e ardentes. À medida que iam avançando pelo mato, o Quincas tomava-se de uma fúria obtusa contra as potências misteriosas do destino. E só dizia, entredentes: “Como é que pode? Como é que pode?”. Parecia-lhe provação demais que morresse uma mulher num lugar em que existiam tão poucas.
Enfim, chegaram diante da casa do Baiano. Quincas adiantou-se, mas não chegou a bater, porque o próprio Baiano surgia diante do grupo, apontando a carabina. Lá dentro ninguém chorava pela mulher que, doente do peito, acabara de morrer. E o dono da casa, com os olhos injetados, a boca torcida, avisou:
— Ninguém toca em minha mulher! O primeiro que der um passo come fogo!
Era taciturno e mau, e cumpriria a ameaça. Então, Quincas, mais moço que os outros, com a memória ainda recente das mulheres da cidade, pediu, implorou:
— Não queremos nada demais. Só espiar tua mulher. Um pouquinho só.
O marido acabou deixando. E houve o desfile, maravilhado, pelo quarto, onde estava a infeliz, um esqueleto com um leve, muito leve, revestimento de pele. Eram homens praticamente loucos, possessos. Mas respeitaram a morte. Alta noite, o marido apanhou de novo a carabina e foi enxotando:
— Fora daqui, todo mundo! E não pensem que eu sou besta de enterrar minha mulher! Não confio em nenhum de vocês, seus cachorros!
Saíram todos, já na antecipada nostalgia do rosto feminino. Sozinho, o marido fechou tudo, arriou as trancas da porta. E, então, encerrado com a mulher, derramou querosene na defunta e em si mesmo; riscou um fósforo e fez a dupla fogueira.
Do lado de fora, os homens rondavam, enfurecidos.
* da série "A Vida Como Ela É", que foi publicada no jornal "A Última Hora" na década de 50, no Rio de Janeiro. Certamente é o único ou um dos únicos escritos de Nelson Rodrigues que tem como pano de fundo o então território do Acre. Imagem: Berenice Barreto, "Amazônia" 50 x 40 cms, acrílica sobre a tela.
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